"Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano."

Os Lusíadas, Luís de Camões
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terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Sugestão de Leitura: “A Rainha Arcaica” de Ivan Junqueira

Ana Salomé ofereceu-nos outra informação valiosa, esta dada por intermédio de Nuno Dempster (a quem agradecemos, o poema e não só): A Rainha Arcaica da autoria de Ivan Junqueira, que se debruça sobre a temática dos amores inesianos.

V           EU ERA MOÇA, MENINA...

Eu era moça, menina, em meus paços
muito honrada, por nome Inês de Castro
quando o vi no Mondego, inquieto e esgalgo,
a sitiar-me a fímbria das espáduas.
Era o infante meu primo, ajaezado,
o dinasta afonsino com seus gládios,
seus cães de fino faro em meu encalço
no afã de decifrar-me a foz do orgasmo.
Ele se veio a mim como quem sabe
que à fêmea apraz o macho sem alarde.
Nada pediu. Quis-me. Fiz-lhe a vontade.
E a sorte, bem sabeis, lançada estava
quando o vi no Mondego (e já era tarde
para o perdão de Portugal e o Algarve).

VI      INÊS E CONSTANÇA

Foi de Castela que vieram as duas
ao encontro do infante e do infortúnio:
Constança, a que jamais lhe aprouve à gula;
e a outra, que lhe coube como adúltera.
Vieram ambas de Castela: uma,
de alta linhagem e trânsfuga luxúria;
e Inês, a de Galiza e coma ruiva,
também fidalga, mas de berço avulso.
E desde logo perceberam as duas
que dele ao todo não seriam nunca,
nem nesta terra nem em parte alguma,
nem como esposas nem rainhas suas:
a que desceu antes de sê-lo ao túmulo
e a que somente o foi quando defunta.

IX            MORTE DE INÊS

Foram dois, sim, que deles guardo a injúria
sepulta neste pélago do mundo,
onde mais nada me apetece ou pulsa
e em vão meus lábios rezam a pedras mudas
Sim, foram dois, eu sei, alfanje em punho
que se soltaram contra mim, aduncos,
com garras de rapina e cenho duro
tão logo el-rei foi surdo às minhas súplicas
e à fala que lhe fiz entre soluços,
pondo ali de redor meus três miúdos.
À vista deles trespassou-me o gume
como um dilúvio de aguilhões e acúleos.
Que dor, infante, a de não mais ser tua!
E foi então que a noite me fez sua.

XII           VAI NUMAS ANDAS...

            . . . sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre círios acesos.

                        Femão Lopes, Crónica de D. Pedro I, cap. XLIV


Por entre a luz dos círios, sob a névoa,
navega o féretro de uma donzela.
Vai numas andas que os fidalgos levam
em lento périplo ao redor das glebas.
E voa assim por dezassete léguas
que entre Alcobaça e as serras se enovelam.
Vai leve o séquito em seu curso aéreo
ao som do réquiem que sussurram os clérigos.
Flameja a infanta sobre um mar de flechas
e nave adentro flui rumo à capela,
cerca de Pedro, que na pedra a espera
e em pedra a entalha da coroa aos pés.
Descansa Inês, longe dos reis terrestres,
Pois que outro reino agora te celebra.

XIII           INÊS, RAINHA PÓSTUMA

Estavas, linda Inês, póstuma e lívida,
como se a vida em ti não mais fluísse,
mas quem te contemplasse saberia
que eras enfim o nervo do conflito:
não tanto aquele que te fez a vítima
dos reis e das intrigas da península,
mas o que dentro de ti mesma urdiram
teu sangue abrupto e teu amor sem bridas.
Por isso é que o sossego não te cinge
nem te refreia o frémito do instinto
que ainda fustiga o flanco de tuas cinzas.
Ali, na pedra, és de ti própria a epígrafe:
princípio e fim da mísera e mesquinha
que despois de ser morta foy Rainha.

Ivan Junqueira

In A Rainha Arcaica, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980

Também disponível:
http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/arquivo/2005_01.html#175236

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